segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Sociedade Civil Parte II: Mas o que é a sociedade civil?

Para responder a esta questão e efectuar uma análise histórica da evolução da sociedade civil, recorremos a uma excelente obra de Luiz Carlos Bresser-Pereira (“Sociedade Civil; a sua democratização para a reforma do Estado”). Ao longo do nosso artigo iremos ter o cuidado de assinalar os excertos recolhidos da referida obra.
De uma forma sumária, a sociedade civil localiza-se entre a sociedade e o Estado, ou seja, cabe-lhe o papel de influenciar o papel do Estado através de uma estrutura organizada como eco da sociedade e dos seus anseios. Entre a sociedade, de um lado, e o Estado e o mercado, de outro, temos a sociedade civil.

Ainda durante a sociedade pré-capitalista de produção, na qual o mercado estava longe de ser o mecanismo básico de coordenação, equilíbrio e apropriação do excedente, a fronteira entre o público e privado não era facilmente definida. Como tal, não existia a necessidade do Estado se afirmar perante a sociedade e vice-versa.

Com a moldagem do Estado moderno, surge um problema que resulta da relação entre o Estado e a sociedade. É neste ponto da história moderna que o Estado é confrontado com uma sociedade “fragmentada e oligárquica”, situação de desequilíbrio que perdurou vários séculos. Em termos práticos, as manifestações concretas desta cresta resultaram em rixas entre uma burguesia liberal contra a aristocracia. Por seu turno, numa segunda fase, surge a luta entre a burocracia socialista e a burguesia. Este desequilíbrio de poderes não ditou, de forma clara , vencedores e vencidos, paralelamente emergia uma sociedade civil como reflexo das vontades heterogéneas da sociedade. Os Estados autoritários (que se prolongaram na Europa até ao século XX) condicionaram consideravelmente a vontade da sociedade civil, no entanto, de forma progressiva, os Estado autoritários ruíram e foi instaurada a democracia.

Na década de 70, a posição do Estado e o equilíbrio com a sociedade civil já se encontrava mais estabilizada, no entanto a crise económica e fiscal que marcaram essa década resultou numa maior pressão no Estado, sendo colocada em causa a posição deste na economia. Mais recentemente, o processo de globalização incrementou essa pressão. Uma ressalva deve ser introduzida de imediato, a globalização não é um fenómeno recente mas a velocidade da mesma incrementou consideravelmente nas últimas décadas mediante a aproximação dos blocos económicos, com as tecnologias de informação, com o decréscimo dos preços das telecomunicações e combustíveis e o surgimento, ainda mais recente, na esfera internacional de economias emergente de dimensões consideráveis. Ora, mediante o processo de globalização “torna-se prioritário reformar ou reconstruir o Estado, ao mesmo tempo que se amplia o papel do mercado na coordenação do sistema económico”.

Com este novo paradigma, uma dúvida surge: quem deverá ser o agente da mudança? O Estado ou a sociedade civil? E neste segundo caso, o que se deve entender por sociedade civil? De forma a obter resposta e conseguir um novo equilíbrio é, indubitavelmente, necessário uma “democratização da sociedade civil”, no entanto não é claro se este processo deverá ser feito por sua própria iniciativa ou será através da interacção com o Estado. Por outro lado, na relação entre Estado e sociedade, o problema da afirmação do Estado frente às oligarquias locais ainda é relevante ou perdeu grande parte de sua relevância dado o avanço do capitalismo e da democracia, sendo então a realidade actual a afirmação da sociedade civil perante o Estado? A obra de Bresser-Pereira visa dar respostas a estas questões.

De forma clara e directa, é reconhecido que antes da afirmação do Estado moderno, o agente da mudança sempre foi “a elite oligárquica de carácter aristocrático e religioso”. O primeiro autor a insurgir-se e a solicitar uma inflexão desta realidade foi Marx referindo “o Estado era uma superestrutura da base económica existente na sociedade” , acabando ainda por sugerir que a mudança deveria ser levada a cabo pelo proletariado. Por seu turno, a direita afirmava que cabia à burguesia impulsionar a mudança. Deixando de lado estes dois extremos, “que podemos considerar tanto utópicos quanto terrificantes”, o conceito de uma sociedade civil democrática passava a ser o cerne da questão. Não era o cidadão em termos individuais que deveria assumir o papel da mudança, na realidade o que tinha sentido seria mais a existência de uma sociedade civil ampla e complexa, existindo ainda espaço para o debate e um incremento do número de participantes de todos os quadrantes da sociedade.

Conforme exposto inicialmente, a década de 70 caracteriza-se por uma redefinição do papel do Estado, por seu turno, na década de 90 procurou-se deliberadamente “reformar e reconstruir o papel do Estado”. A globalização e o aumento das assimetrias sociais incrementou esse desejado, mais concretamente o papel do Estado não deveria ser reduzido ao mínimo só por si, antes pelo contrário, deveria existir uma revitalização dos seus poderes de forma a garantir a “ordem, eficiência produtiva e justiça social”. Neste contexto, a sociedade civil assumia um papel estratégico na reforma das instituições básicas: do Estado e do mercado. A sociedade civil, situada entre a sociedade e o Estado, deixa de ser passiva, dominada pelo Estado ou o mercado, e passa a ter a capacidade em reformar o Estado e o mercado. Como expressa na sua obra Brasser-Pereira: “Os acontecimentos do século vinte introduziram novas regras na forma como o Estado e a sociedade se relacionam. Não é possível pensar no laissez faire depois que o século vinte demonstrou de forma tão clara a potencialidade da intervenção do Estado, como não é possível pensar em um Estado produtor de bens e serviços depois que esse mesmo século deixou evidente as limitações dessa intervenção”. Mediante a evidente revitalização da sociedade civil, existia um aspecto essencial: a democratização da própria sociedade civil.

A democracia era um sistema que já permitia garantir a liberdade e a justiça social, no entanto caracterizava-se por ser um regime político instável. Com o surgimento do capitalismo liberal, a apropriação do excedente passa a ser feita pelo mercado sem a imposição forçada, as classes dirigentes aceitaram a pressão das classes médias e dos trabalhadores organizados por um sistema democrático. Quer o Estado (com a tarefa de regular ou coordenar toda a vida social inclusive estabelecendo as normas do mercado) quer o mercado (com o papel de coordenar a produção de bens e serviços realizada por indivíduos e empresas) são duas instituições criadas pela sociedade. Sendo ambas um resultado da sociedade, necessitam por isso de serem reformadas continuamente, mediante o contexto histórico, económico e financeiro. Mais uma vez surge a questão: quais os agentes aptos a levar a cabo as sucessivas reformas, ou por outras palavras, a mudança?

A primeira resposta possível é: O Estado. Numa primeira fase foi isso que aconteceu, no entanto com o desenvolvimento dos sistemas económicos e sociais, complementados por uma crescente democratização dos sistemas políticos, o actor ou agente principal (de reforma do Estado e do mercado) passa a ser a própria sociedade. Em termos concretos ainda não chegamos a esse ponto mas já estamos no patamar em que é a sociedade civil que desempenha esse papel (“sociedade civil entendida como a sociedade que, fora do Estado, é politicamente organizada, o poder nela existente sendo o resultado ponderado dos poderes económico, intelectual e principalmente organizacional que seus membros detêm”).

Na sua obra Bresser-Pereira introduz uma ressalva importante: “A sociedade civil é crescentemente o agente transformador nas sociedades democráticas, mas isto não autoriza transformá-la em um conceito moral, como fez Hegel com o Estado, Marx com o proletariado, o comunismo vulgar com a burocracia, e o neoliberalismo com o mercado. Ao contrário, a sociedade civil é, em relação ao Estado, um fenómeno histórico que resulta do processo de diferenciação social”

Sociedade Civil como agente da mudança: um fenómeno recente

Mediante o exposto na parte inicial deste artigo, concluímos que a sociedade civil como agente da mudança é um fenómeno ainda recente:

• Durante séculos, o Estado impunha-se às nações, nomeadamente às oligarquias locais (na Europa assumiram durante muitos séculos um carácter feudal e religioso);

• No Brasil o Estado teve que se impor aos “coronéis”;

• Na Índia aos marajás;

• Em África aos chefes tribais;

• Em Portugal, durante séculos existia um poder central, dominado pela coroa e a realeza, posteriormente gorada a utopia da primeira república imperou um modelo político autoritário, na qual o Estado assumiu o papel exclusivo como actor da mudança, recorrendo a todas as formas para silenciar e manipular;

Actualmente, a democracia pode ser ainda incompleta e ainda existem oligarquias e lobbys fortes instituídos e, muitas vezes, camuflados. No entanto, a sociedade civil já é independente do Estado, por outro lado, já adquiriu a capacidade em influenciar a organização do Estado e do mercado.

Em Portugal surgiu, na última década, um movimento designado Mais recentemente de salientar o movimento “Compromisso Portugal”: Alguns dos melhores gestores, economistas e professores universitários (casos de António Carrapatoso, António, Horta Osório, António Mexia, António Nogueira Leite, Fernando Ulrich, Paulo Azevedo,etc) organizaram-se e produziram trabalho onde analisaram a realidade do país e fizeram propostas. No início tiveram grande impacto mediático e, por isso, foram alvo de fortes ataques.

Acompanhamos de forma regular o trabalho das “SEDES”: uma das mais antigas associações cívicas portuguesas. Constituída em 1970, os seus fundadores eram oriundos de diferentes formações académicas, estratos sociais, actividades profissionais e opções políticas. Um denominador comum animava os fundadores da SEDES: o humanismo, o desenvolvimento sócio-cultural e a democracia.

No próximo artigo (Sociedade Civil Parte III) iremos abordar as condicionantes da relação Sociedade- Estado.

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